Vozes do GrowLIFE - Reforma Agrária

Vozes do GrowLIFE regressa com uma entrevista com Alexandre e Mariana, fundadores da Reforma Agrária — uma plataforma de base comunitária que está a redefinir a forma como nos ligamos à comida, à terra e a quem a produz. Nesta edição partilham connosco o que os levou a criar um espaço digital enraizado na ecologia, na solidariedade e na soberania alimentar. 

À medida que unimos esforços para fortalecer os sistemas alimentares locais, a Mariana e o Alexandre partilham connosco o percurso por detrás do projeto e a sua visão de uma forma mais justa e sustentável de viver e comer.

Esta conversa assinala  o início da nossa colaboração com a Reforma Agrária. Vamos trabalhar juntos para aproximar produtores e consumidores.

Vamos começar pelo início. Quem são vocês, para além da Reforma Agrária? Contem-nos um pouco sobre o vosso percurso — as vossas origens, interesses e as experiências de vida que moldaram os vossos valores e a vossa relação com a alimentação, o ambiente e a comunidade.

Profissionalmente estivemos sempre ligados à criação de sites e ao marketing digital. Mas para nós, a imersão na Natureza é uma necessidade tão básica como um sono reparador! 

A Natureza tem sempre um sinal, uma resposta para nos dar, se a escutarmos e observarmos com atenção.

O Alexandre estudou Engenharia Informática na FEUP e a Mariana Biologia Marinha na Universidade do Algarve (curso que abandonou na fase de estágio).

Começamos a colaborar, quando criamos o Laranja Mecânica, um dos primeiros cibers, do Porto, que ficava na Rua de Santa Catarina, perto do Mercado do Bolhão.

Depois, veio a criação de sites, na 360 Graus, Internet e Sistemas de informação Lda, com sede no Porto. E agora, trabalhamos na Beta Code Consultoria e Sistemas de Informação, Unipessoal Lda, com sede em Aveiro.

Qual foi o momento que deu origem à ideia da Reforma Agrária? Houve algum ponto de viragem, frustração ou reflexão pessoal que vos levou a pensar: “Temos de fazer alguma coisa”? O que transformou esta ideia numa ação concreta?

Na altura vivíamos no centro do Porto e tínhamos uma forte vontade de mudar para o campo.

A força centrípeta que a falta de qualidade de vida nas cidades, mesmo com a dimensão do Porto, actua sobre nós, mantendo-nos num grande frenesim, mas no final temos a sensação de que nos movemos muito, mas não saímos do lugar e não sentimos insatisfação, mas também não estamos satisfeitos, é uma espécie de vazio.

Só quando mudamos, é que muitas vezes temos a noção de que esse sentimento decorre da falta de contacto diário com a natureza.

Por que o nome "Reforma Agrária"? É um nome com uma forte conotação histórica, política e simbólica. Por que razão o escolheram? Que significado tem para vocês no contexto deste projeto?

A escolha de um nome/domínio para um projecto é sempre uma tarefa difícil e encerra muitas hesitações. Na altura surgiu, por alguma razão, o nome Reforma Agrária, cujo domínio estava livre. Pareceu-nos um nome “arcaico” para um projecto web, mas ao mesmo tempo forte.

E pensamos, se o que nós queremos, realmente, é fazer uma Reforma da Agricultura, mas pelo lado do consumidor, porque não? …

Claro que, para pessoas mais politizadas, à esquerda e à direita, este nome levanta sempre reticências e uma forte opinião: ou se gosta ou se detesta.

A nossa Reforma Agrária, quer resgatar (dar-lhes vida e pô-las a produzir) uma série de pequenas propriedades, que permanecem abandonadas ao longo do país, porque já não há redes de distribuição, de pequena escala, capazes de absorver a produção local, destas propriedades, que poderiam produzir alimentos frescos e de qualidade, de uma forma sustentável. 

Nós procuramos colmatar um pouco essa lacuna e ajudar a reconstruir essas redes de pequena escala, a nível local.

O solo para nós é um bem essencial, quase sagrado, e que deve ser preservado, protegido e valorizado, sobretudo no contexto atual, de consumo crescente de alimentos ultraprocessados – pobreza alimentar.

Mas não nos revemos no slogan da antiga Reforma Agrária “A terra a quem a Trabalha”.

Até porque, em última análise, por essa lógica não haveria reservas ecológicas. Um bom exemplo disso, é a Floresta da Amazônia: não são os povos indígenas, que usufruem do que o solo da floresta produz, que a estão a destruir, são aqueles que reivindicam as terras para as trabalhar!

Se nós tivéssemos um slogan relativo à Terra seria: “Compre Terra, salve o Planeta!”. E, felizmente, já há algumas pessoas a fazê-lo! Para nós esses são os verdadeiros ativistas climáticos e merecem-nos grande respeito!

Depois dos fogos de Pedrogão (para desviar as atenções do elefante na sala) os políticos criaram uma narrativa que transformou a terra num encargo financeiro, e numa grande responsabilidade.

Defender a floresta e a vida passou a ser equivalente a máquinas de arrasto a limpar terrenos, em épocas de nidificação, arrasando tudo o que antes era vida, mas deixando muitas vezes um rastro de plásticos desfeitos no solo. Isto fica caro, e transformou-se num novo negócio, florescente!

Portanto – um luxo inútil, que a classe média, cada vez mais depauperada, descarta. E as pessoas, assustadas com as coimas e os custos da limpeza dos terrenos, estão a fazer o contrário, do que deviam, a desfazer-se das suas pequenas propriedades rurais.

Quando a Terra ficar maioritariamente na posse de fundos imobiliários, e de grandes investidores, das duas uma: ou surgem políticas públicas que os vão remunerar para preservar a biodiversidade, com o dinheiro dos nossos impostos, ou a biodiversidade vai sofrer porque estes fundos quando investem é sempre para ter retorno financeiro.

Somos adeptos de deixar a Natureza funcionar, ao seu ritmo, na maior área possível da Terra. Por isso, estas políticas chocam-nos!

De fazer compostagem num apartamento, a ir viver para o campo e criar a Reforma Agrária — o que aprenderam ao longo do caminho? Quais foram as maiores descobertas ou desafios? De que forma é que esta jornada mudou a forma como abordam e pensam sobre sustentabilidade?

De facto, já na altura, nos fazia uma grande confusão deitar para o lixo, os restos orgânicos. É um non sense. Só lamentamos a falta de coragem, o arrependimento, de não o ter feito mais cedo.

Ter uma terra para cultivar uma parte dos nossos alimentos (hortícolas e fruta), é toda uma experiência: compensadora, agradável, saudável, criativa e ao mesmo tempo estimulante e relaxante. A atividade física na agricultura não tem paralelo.

Ao longo deste percurso, também aprendemos a observar a Natureza, respeitá-la, usar o bom senso e a ter perseverança.

Porque atualmente com a democratização da utilização massiva dos pesticidas e plásticos na agricultura, custa-nos dizê-lo, mas é verdade: deixamos de aceitar conselhos de como fazer agricultura… 

Aprendemos que é preciso ter muita autoconfiança, e saber o que se quer, para não ser arrastado para este tipo de agricultura insustentável.

Aprendemos que uma agricultura sustentável, biodiversa ao fim de 5 anos, temos uma das coisas mais valiosas do mundo, um solo saudável, produtivo e resistente a pragas.

Eu diria que o mais importante, no contexto económico/produtivo, para ter uma alimentação saudável, é dispor de um terreno para cultivo.

À medida que a plataforma cresce, como se mantêm a ligados aos vossos objetivos? Gerir um projeto online pode ser exigente. O que vos ajuda a manterem- se fiéis aos valores que vos inspiraram desde o início — e a não se perderem no ruído digital?

O projeto da Reforma Agrária, é uma consequência da nossa visão, maneira de estar e ser. Não é algo “diferente” e desligado dos nossos valores. Vai evoluindo connosco e nós com ele. Só assim, faz sentido.

Uniram-se recentemente ao GrowLIFE. O que significa esta colaboração para vocês? Como pode esta parceria contribuir para os objetivos comuns? Que valor acham que pode trazer a produtores, consumidores — e à construção de um sistema alimentar mais justo, local e sustentável?

É sempre agradável conhecer um projecto que tem tantos pontos de contacto com a Reforma Agrária. Dá mais esperança, mais força, de que é possível antever um mundo mais saudável e sustentável.

A história mostra que a linha do tempo não é uma recta. Temos esperança, mesmo que a ecologia ainda não tenha voz, de que um dia seja possível alcançar um maior equilíbrio.

Porque o pior problema da agricultura, é a falta de literacia ambiental dos agricultores e dos consumidores. Se conseguirmos aumentar a literacia ambiental dos agricultores, e a literacia alimentar /nutricional dos consumidores, mais cedo ou mais tarde, todos os outros problemas se resolvem!

Sem intervir na educação ambiental, dos agricultores, estamos a alimentar um ecossistema agrícola baseado, única e exclusivamente, na satisfação de interesses económicos imediatos. O que, ironicamente, implica custos económicos desastrosos a médio e longo prazo! 

Acreditamos que não é uma missão impossível, mas é desafiante e nós não temos as competências adequadas.

Para isso, é muito importante unir esforços!

Olhando para o futuro: que sistema alimentar desejam ver desenvolvido em Portugal? Quer se trate de algo prático ou uma vontade mais remota, o que gostariam de ver mudar na forma como produzimos, partilhamos e consumimos alimentos neste país?

O nosso objectivo é que haja um movimento maior de cidadania activa, e não meros consumidores, em defesa de medidas políticas que discriminem positivamente o consumo de alimentos frescos e de qualidade.

Isso só é possível com uma produção local, mais diversificada, e uma rede de pontos de entrega, que poderia incluir os mercados municipais, para facilitar a distribuição aos consumidores locais. Neste momento são muito poucos os mercados locais, com espaços disponíveis para os pequenos produtores, que fazem vendas pontuais.

Quando os mercados municipais exigem que as bancas de frescos sejam ocupadas todos os dias, durante horas, estão a atrair os revendedores que vão ao mercado abastecedor comprar fruta importada, e a expulsar os produtores locais – depois, não percebem porque é que os mercados municipais não têm sucesso – porque para esse tipo de produtos temos os hipermercados, que o fazem com mais profissionalismo e qualidade, mas não conseguem oferecer uma grande diversidade de fruta e legumes sazonais frescos, produzidos em pequena escala por produtores locais, que não têm uma grande quantidade para entregar nos hipermercados, mas têm diversidade – e essa deveria ser a vantagem competitiva dos mercados municipais, mas muitas vezes não é!

É muito triste ver desaparecer dos Mercados Municipais, a diversidade de maçãs, pêras, pêssegos, etc, que ainda resistem em muitos quintais.

Dados os estímulos constantes na televisão e na internet, ao consumo de produtos alimentares ultraprocessados gostaríamos que o estado tivesse um papel regulador, muito mais ativo, nomeadamente, na promoção da literacia ambiental e da literacia nutricional – uma vez que elas também estão intimamente relacionadas com a preservação da biodiversidade e da saúde coletiva.

É absolutamente terrível que num espaço de dois gerações, os portugueses, tenham perdido anos de vida saudável, por serem permeáveis a uma cultura alimentar tipo “fast food”.

Os números da obesidade, diabetes tipo 2, problemas cardiovasculares e de certos tipos de cancro, são o indicador mais visível dessa degradação alimentar, que decorre da substituição da dieta mediterrânea, pela dieta fast food.

O galopante aumento da comida processada presente no cabaz alimentar das famílias é assustador.

Há mais alguma coisa que gostaria de partilhar?

Porque estamos a falar de qualidade de vida, um apelo: num mundo digital em que não há tempo “morto”, tudo é ocupado, nunca foi tão importante parar para pensar na vida e na sociedade. Isto é, cada vez mais o cidadão passou a ser um consumidor disciplinado (pelos mass media), que vive numa bolha de falsa fartura e diversidade alimentar.

Neste contexto, deixamos uma pergunta: como é possível mudar o status quo, sem recurso a grandes meios financeiros?

Falta reforçar o ensino de Ecologia, porque há um falhanço redundante no sistema de educação ambiental e um consumismo incompatível com os recursos do planeta:

Como é possível, nas frutarias por cada tipo de fruta, gastar um saco de plástico? E este comportamento, é transversal a todas as gerações.

Como é possível, que pessoas com grandes quintais, no final deitem para o caixote de lixo indiferenciado os restos das podas?

Como é possível que mesmo na agricultura para autoconsumo, as pessoas usem e abusem de herbicidas e pesticidas?

Como é possível que para limpar umas bermas e passeios as juntas de freguesia, ainda pulverizem com glifosato?

Como é possível, o consumidor preferir a fruta calibrada e com aspecto impecável?

É preciso encontrar beleza no caos e perceber, que o caos é vida. Tentar ordenar e organizar a Natureza, como acontece atualmente, não está a trazer bons resultados.

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